Um processo natural que transforma a acidez em suavidade e revela camadas ocultas de sabor
Pouco comentada fora dos bastidores das adegas, a fermentação malolática é uma etapa determinante na identidade de muitos vinhos. Em especial, em tintos e alguns brancos de perfil mais cremoso.
Conhecida popularmente pelo estilo amanteigado dos famosos Chardonnays da Califórnia e da Borgonha, essa técnica envolve uma transformação sensorial fascinante.
Ainda que tecnicamente não seja uma “fermentação” no sentido clássico (não envolve leveduras nem produção de álcool), a conversão malolática transforma a estrutura sensorial e microbiológica do vinho, modulando acidez, textura e aromas.
Mais do que um detalhe técnico, a fermentação malolática é uma escolha estilística e estratégica que revela a mão do enólogo e, muitas vezes, o estilo do terroir.
Neste artigo, vamos explorar o que é esse processo, como ele funciona, impactando sua ocorrência e por que ele é tão importante – ou evitado – na produção de grandes vinhos.
O que é a fermentação malolática?
A fermentação malolática (FML) é uma conversão bioquímica realizada por bactérias láticas, principalmente a espécie Oenococcus oeni, predominante devido à sua alta tolerância às condições adversas do vinho, como álcool elevado e pH baixo.
Essas bactérias transformam o ácido málico – presente naturalmente nas uvas e com sabor mais agressivo, lembrando maçã verde – em ácido lático, mais suave e cremoso, liberando dióxido de carbono no processo.
Esse fenômeno pode ocorrer de forma:
- Espontânea, com bactérias indígenas presentes em barricas ou tanques;
- Induzida, por meio da inoculação de culturas selecionadas, geralmente após ou durante a fermentação alcoólica.
Apesar de ser chamada de “fermentação”, trata-se de uma descarboxilação bacteriana, e não de uma fermentação alcoólica. Sua realização depende de fatores como temperatura, pH, teor alcoólico e níveis de dióxido de enxofre (SO₂) no vinho.
Por que a fermentação malolática é essencial para muitos vinhos?
A decisão de permitir ou bloquear a fermentação malolática depende de três principais objetivos enológicos:
Estabilidade microbiológica
Realizar a FML antes do engarrafamento evita que ela aconteça de forma espontânea na garrafa — o que poderia resultar em turbidez, efervescência indesejada e notas lácteas indesejáveis.
Modulação da acidez
O ácido málico é mais forte que o lático. Ao reduzi-lo, o vinho eleva ligeiramente seu pH, suavizando sua acidez. Especialmente importante em vinhos tintos jovens ou com uvas de regiões mais frias.
Transformações sensoriais
A FML é famosa por originar o diacetil, composto associado ao aroma de manteiga, nozes e creme. Aroma muito característico no estilo “Chardonnay amanteigado”.
Ainda assim, o diacetil pode ser metabolizado posteriormente pelas próprias bactérias ou pelas leveduras remanescentes da fermentação alcoólica, no estágio conhecido como sur lies (sobre borras).
Em tintos, o impacto é mais estrutural, já que os polifenóis mascaram o diacetil, contribuindo para vinhos mais macios e equilibrados. Entretanto, a FML pode intensificar frutas vermelhas e reduzir notas vegetais.
Tipos de vinho que se beneficiam (ou não) da fermentação malolática
Vinhos tintos: quase todos os tintos de qualidade passam por FML. A suavização dos taninos e o ganho de estrutura tornam o processo quase indispensável, exceto em climas muito quentes, onde o risco de perda de frescor é real.
Brancos e espumantes: a decisão é mais estilística. Uvas como Chardonnay, Viognier e Chenin Blanc ganham corpo e complexidade com a FML. Já Riesling, Sauvignon Blanc e Gewürztraminer, que prezam por acidez crocante e perfil aromático vibrante, muitas vezes têm a FML inibida.
Fatores que influenciam o sucesso (ou fracasso) da FML
A fermentação malolática é sensível ao ambiente. Alguns fatores que favorecem ou dificultam sua ocorrência:
Fator | Favorável | Desfavorável |
Temperatura | 18–22 °C | <16 °C ou >25 °C |
pH | 3.3–3.5 | <3.1 |
Teor alcoólico | <13% | >14% |
SO₂ total | <30 mg/L | >40 mg/L |
Além disso, compostos fenólicos, resíduos de defensivos, níveis de cobre e a presença de microrganismos competidores também afetam a performance das bactérias láticas.
FML: vilã ou heroína?
Embora essencial para muitos vinhos, a FML também pode causar problemas se ocorrer no momento errado:
- Se iniciada antes da fermentação alcoólica, pode gerar acidez volátil, notas de iogurte azedo e até texturas desagradáveis (ropiness).
- Bactérias em falta de ácido málico podem metabolizar açúcares e produzir ácido acético — o famigerado vinagre.
- A não finalização completa da FML antes do engarrafamento, especialmente em vinhos com pouco SO₂, pode causar fermentações em garrafa.
Por isso, controlar a FML — ou sua ausência — é um dos grandes desafios da vinificação moderna.
Quando a fermentação malolática é evitada?
Em climas quentes, onde os vinhos já têm baixa acidez, a FML pode tornar a bebida desequilibrada. Nesses casos, os enólogos utilizam técnicas como:
- Adição de SO₂ logo após a fermentação alcoólica;
- Manutenção do vinho em baixa temperatura;
- Uso de enzimas como lisozima;
- Filtração estéril antes do engarrafamento.
Finalizando a alquimia: quando a suavidade encontra a precisão
A fermentação malolática é, ao mesmo tempo, um processo técnico e sensorial, que une ciência microbiológica com arte enológica.
Ela é o elo que transforma vinhos crus e vibrantes em vinhos envolventes e integrados, capazes de refletir com mais profundidade o terroir e a intenção do produtor.
Como toda ferramenta poderosa, deve ser usada com conhecimento, timing e propósito. Em mãos experientes, a FML é mais do que uma fase: é o segundo fôlego de um vinho em busca de equilíbrio e expressão.
Referências:
Paramithiotis et al. (2022). Malolactic Fermentation—Theoretical advances and practical considerations. Fermentation, 8(10), 521. https://doi.org/10.3390/fermentation8100521
Australian Wine Research Institute (2020). Malolactic fermentation: Fact Sheet. Disponível em: https://www.awri.com.au
Lerm et al. (2016). Malolactic Fermentation: The ABC’s of MLF. South African Journal of Enology and Viticulture, 31(2). https://doi.org/10.21548/31-2-1417
Sumby et al. (2014). Implications of new research and technologies for malolactic fermentation in wine. Applied Microbiology and Biotechnology, 98(19), 8111–8132. https://doi.org/10.1007/s00253-014-5976-0
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