Como o uso de engaço pode suavizar a percepção gustativa do vinho, ampliando complexidade e equilíbrio na taça.
A prática da vinificação com engaço, amplamente utilizada em regiões como Borgonha e Beaujolais. Está tradicionalmente associada ao aumento da estrutura tânica, do frescor e da expressão varietal.
No entanto, análises recentes revelam uma faceta menos explorada. O engaço pode contribuir significativamente para a percepção de dulçor no vinho tinto.
Um reencontro com os engaços
Ao incluir cachos inteiros ou parcialmente inteiros na fermentação, o produtor altera profundamente o equilíbrio fenólico do vinho.
Essa técnica, conhecida como whole bunch vinification, modifica a estrutura, mas também influencia diretamente a sensação gustativa — e não somente pela textura.
Dados experimentais demonstram que vinhos elaborados com engaço apresentam concentrações mais elevadas de astilbina, um flavonoide com sabor adocicado.
[Flavonoides são compostos naturais presentes nas uvas, conhecidos por suas propriedades antioxidantes e influência no sabor e na cor dos vinhos.]
Quando o engaço adoça a taça
A astilbina é extraída principalmente das películas e dos engaços. Em ensaios realizados com diferentes castas, como Merlot, Gamay e Pinot Noir, os vinhos com engaço apresentaram níveis de astilbina entre 19,7 e 24,3 mg/L — valores bem acima do limiar de percepção gustativa, definido em 5,7 mg/L.
Isso significa que, mesmo em vinhos secos, há um leve dulçor perceptível, contribuindo para uma textura mais macia e uma boca arredondada.
No Merlot, o engaço é responsável por até dois terços da astilbina total no vinho. Já no Pinot Noir e no Gamay, a maioria da astilbina provém das películas, embora o engaço também contribua.
Astilbina: o composto doce invisível
Naturalmente presente em diversas plantas e partes da videira, a astilbina pertence à família dos flavonóis. No contexto da vinificação, é particularmente abundante em engaços frescos e películas.
Durante a fermentação alcoólica, sua extração ocorre principalmente nos primeiros oito dias. A percepção do dulçor gerado por esse composto é descrita como suave e natural, distinta do dulçor conferido por açúcares residuais ou adições externas.
Mais dulçor, menos intervenção?
A possibilidade de alcançar uma sensação mais macia sem recorrer a práticas corretivas ou adição de componentes exógenos é atraente para produtores que buscam autenticidade.
A vinificação com engaço pode ser, nesse contexto, uma ferramenta para modular o equilíbrio gustativo, especialmente em vinhos de mínima intervenção.
O dulçor sutil pode compensar taninos mais marcantes ou equilibrar a acidez, contribuindo para vinhos mais acessíveis ao paladar contemporâneo.
E os isômeros? Um bônus para a guarda
Além da astilbina, a guarda do vinho promove a formação de seus isômeros, como a neoastilbina, que apresenta perfil ainda mais doce e maior estabilidade.
Esse processo pode intensificar a sensação de suavidade ao longo do envelhecimento, explicando por que alguns vinhos ganham arredondamento com o tempo, mesmo mantendo sua estrutura fenólica.
[Isômeros são variações estruturais de uma mesma molécula que podem apresentar propriedades sensoriais diferentes — como maior doçura ou estabilidade.]
Para o enólogo, um novo horizonte sensorial
A técnica de vinificação com engaço não deve mais ser encarada apenas como uma decisão estilística. Com base em dados objetivos, ela emerge como ferramenta sensorial capaz de ajustar o equilíbrio entre estrutura e suavidade.
Ao compreender o comportamento da astilbina e suas origens, o enólogo pode explorar diferentes proporções e tempos de maceração com mais precisão, alinhando intenção e resultado.
Engaço, dulçor e um novo equilíbrio para o vinho
Em um cenário onde o consumidor valoriza vinhos equilibrados, elegantes e autênticos, a vinificação com engaço ganha nova relevância.
O engaço, antes visto como elemento de rusticidade, revela-se também fonte de suavidade. Um detalhe natural, quase invisível, mas capaz de transformar a experiência na taça.
Continue explorando como práticas enológicas influenciam o perfil sensorial dos vinhos: leia também o artigo Fermentação Malolática: textura, equilíbrio e elegância na taça.